Depois da repercussão do movimento Me Too – que ganhou força em 2017 com a adesão de dezenas de atrizes de Hollywood contra a cultura de assédio sexual no principal cenário do cinema mundial e colocou um dos seus maiores executivos, Harvey Weinstein, atrás das grades – A ONG Respeito em Cena, fundada em março deste ano pela diretora artística e ativista brasileira Luciana Sérvulo da Cunha, lança a campanha “Abuso não é Arte”, com vídeos que reúnem mais de 35 artistas de dez países da América Latina. O Brasil está representado por nomes como Mônica Torres, Vanessa Gerbelli, Juliana Alves e Ângela Vieira. Um documentário sobre o tema também está em fase de produção. Embora as ações já estivessem previamente planejadas, o movimento acabou ganhando os holofotes depois que a atriz Denise Weinberg, extremamente respeitada no meio artístico, resolveu contestar o ator e diretor Wagner Moura quando ele defendeu, em recente entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o trabalho da preparadora de elenco, Fátima Toledo, que atuou em alguns dos mais premiados filmes do cinema nacional, como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, além do recente “Marighella”, que marca a estreia de Moura como diretor. Em texto publicado nas redes sociais de Luiz Antônio Rocha, diretor de teatro, Weinberg afirmou: “Wagner Moura, com todo respeito, apesar de você morar em Los Angeles, a pior cidade do mundo para atores de teatro e do oficio, talvez seja boa pra ganhar dinheiro, não posso deixar batido sua opinião no Roda Viva, sobre Fátima Toledo, (preparadora de elenco, hein?), uma pessoa do mal, que não entende nada sobre nosso oficio, que me provocou uma hemorragia muito séria por suas condições bárbaras de treinamento, dignas de uma fascista e torturadora, não consigo entender sua defesa por esse ser que deveria e já está fora do nosso meio, graças a Deus”. Weinberg também revelou publicamente ter sofrido violência psicológica e física durante o preparo de “Linha de Passe”, filme de Walter Salles e Daniela Thomas de 2008, afirmando ainda ter sido humilhada por Toledo. Inclusive, existe um abaixo-assinado de em apoio a Weinberg, com mais de 200 nomes, incluindo atores, advogados, juristas, escritores, diretores, músicos, cenógrafos, figurinistas e jornalistas, cujo texto reivindicando o fim de maus-tratos não menciona a preparadora de elenco, Fátima Toledo.
Depois desse petardo, a preparadora de elenco se manifestou em entrevista ao site F5, prometendo tomar as medidas judiciais cabíveis contra o que classificou como “uma cruzada vil de tentativa de destruição da sua reputação com base em mentiras, corroboradas por uma corrente de cancelamento partindo de pessoas que não conhecem o seu trabalho”.
Metodologia é colocada no centro de debate
Desavenças à parte, segundo a entidade, a ideia é discutir mais a fundo as práticas adotadas na preparação de atores. Para isso, lançou também um manifesto onde afirma que: “a violência psicológica provoca traumas, deixa sequelas e marcas psíquicas profundas, prejudica carreiras e afeta de forma nociva vidas pessoais e familiares. O processo criativo deve ser estimulado e facilitado pelas lideranças em uma dinâmica de coparceria com as/os artistas, preservando sua autonomia, integridade, saúde física e emocional, inteligência e liberdade de criação”.
De acordo com Luciana Sérvulo da Cunha, da Respeito em Cena, o objetivo é promover a conscientização sobre comportamentos desrespeitosos e abusivos, iniciativa endossada por atores como Paulo Betti, Cássio Scapin, Malu Mader, Suzana Pires, Daniel Dantas, Alessandra Negrini, Antônio Calloni, Dadá Coelho e Fabíula Nascimento. “O trabalho da Respeito em Cena é baseado em campanhas educativas que fomentam debates e o diálogo. Quando uma pessoa rompe publicamente um longo silêncio sobre um abuso que ela sofreu e que lhe causou sequelas e um monte de danos, não seria bem mais fácil as pessoas envolvidas escutarem, chamarem para uma conversa, reconhecendo o erro ou
apontando para uma reconciliação possível?”, questiona a Sérvulo em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Signatário da carta-manifesto, o ator Paulo Betti reforça que não se trata de “um manifesto contra a Fátima Toledo”. Segundo ele, trata-se de documento de apoio a Denise para que os diretores e preparadores estejam mais atentos. “Atores não querem ser adestrados como animais”, afirma.
Métodos de Atuação
Os abusos cometidos em cena relatados por atores acontecem na tentativa de se fazer aflorar fortes emoções, um recurso pautado no método do russo de Constantin Stankislavski (1863-1938), que tem como alicerce provocar o ator a buscar sensações viscerais na sua memória afetiva para representar um papel. No método de Stanislavski são usados os sentimentos e as experiências do ator para se conectar com o personagem que ele está representando. Isso não quer dizer que a metodologia do diretor e ator preconize explicitamente a tortura, física ou psicológica, para alcançar melhores resultados, mas, sem dúvida, por instigar vivências realistas pode colaborar para distorções e abusos e cabe aos profissionais de toda indústria do audiovisual estarem atentos que é necessário respeitar limites, mesmo diante da ânsia de extrair a melhor interpretação.
Mas o controverso método Stankislavski não é o único. A técnica de atuação de Lee Strasberg (1901-1982) propõe que a conexão com o personagem seja pautada em emoções e memórias pessoais, despertadas a partir de exercícios e práticas, incluindo memória dos sentidos e memória afetiva. No geral, esse método – usado por muitos astros de Hollywood, como Jared Leto, Jake Gyllenhaal e Angelina Jolie – instiga os atores a se imaginarem com os pensamentos e emoções de seus personagens para desenvolver performances realistas.
Já a atriz, professora e fundadora do Stella Adler Studio of Acting, Stella Adler (1901-1992) desenvolveu um estilo de atuação focado na imaginação do ator. De acordo com Adler, se concentrar demais em aflorar emoções pessoais não é uma maneira saudável de abordar a arte da atuação. “Mergulhar nas emoções que eu vivenciei – por exemplo, quando minha mãe morreu – para criar um papel é doente e esquizofrênico. Se isso é atuar, eu não quero fazer isso”, chegou a afirmar.
Outros método é do ator de cinema e teatro britânico, Peter Stephen Paul Brook, que enfatiza a comunicação entre os atores e o público. Brook acreditava que quando o público consegue se simpatizar com as emoções dos atores, o sucesso é garantido. Segundo ele, se o ator não estiver 100% comprometido com o papel e se não tiver investido na sua profundidade emocional e não acreditar no personagem, a sintonia com os seus parceiros de cena e, principalmente com o público, é improvável.
Para finalizar, merece destaque também o método Meisner, desenvolvido por Sanford Meisner, professor, ator e diretor americano que foi um dos fundadores do The Group Theatre, escola que revolucionou o treinamento de atores no século XX. “Os atores não são cobaias para serem manipulados, dissecados e, muito menos, de maneira puramente negativa. Nossa abordagem não era orgânica, isto é, não era saudável”, afirmou Meisner pouco depois de desenvolver sua técnica. A partir de então, ele criou uma linha de interpretação onde atuar é como viver verdadeiramente situações imaginárias. Meisner acreditava que um ator nunca deveria ser manipulado ou impactado negativamente para ser capaz de representar. Em vez disso, ele mirava na verdade sólida e orgânica, enraizada firmemente no instinto. Este processo consiste numa série de exercícios que trabalham a habilidade de improvisar, acessar a vida emocional e trazer espontaneidade e presença para atores e atrizes, ou até mesmo para quem não trabalha com a dramaturgia. Como se vê, interpretação não combina com abuso.
Rush Video – Ideias em movimento.