No artigo anterior escrevemos sobre alguns trunfos técnicos que a equipe da série Game of Thrones obteve no episódio “The Long Night” e como o programa da HBO conquistou a admiração de uma legião de fãs ao longo de oito temporadas. Claro, a proeza técnica, as escolhas estéticas da direção, são de crescer os olhos, mas, no fundo, elas não dariam em nada, se, por trás do projeto não houvesse um roteiro extremamente bem conceituado.
Game of Thrones capturou a imaginação da audiência de tal modo, que os últimos episódios se alastraram em discussões e debates como poucos nas redes sociais. Acontece assim com filmes marcantes. A gente passa a se envolver com os personagens, que cativam nossas emoções e nos levam a torcer por eles. Grandes heróis e heroínas nos inspiram. Condenamos grandes vilões.
Há também sempre obstáculos que fornecem o lema que os atores tanto amam – conflito. Este é o coração do drama. O protagonista quer algo e as pessoas e a natureza atrapalham ou conspiram para que o herói não alcance o objetivo.
Em Game of Thrones, essa questão está lá reforçada, mas existe algo bem mais complexo, que, de fato, serve como uma bela aula de roteiro para aspirantes.
O autor da história George R.R. Martin, veterano roteirista de Hollywood, concebeu a intriga inspirado por romances, personagens e tramas reais da história medieval européia. A maioria de Westeros é uma reminiscência da alta nobreza, de terras e culturas, à intriga do palácio, sistema feudal, castelos e torneios de cavaleiros. Uma inspiração principal para os romances é a Guerra das Rosas Inglesa (1455-85) entre as casas de Lancaster e York , refletida nas casas de Martin Lannister e Ned Stark.
A intrigante Cersei Lannister, uma das personagens mais odiadas da série, evoca Isabella , a “loba da França” (1295-1358). Ela e sua família, como retratada na novela histórica de Maurice Druon , The Accursed Kings, foram a base para a concepção de Cersei.
Contudo, esses eram apenas alguns elementos para formar a intriga. Martin precisava de um gancho para conduzir sua história, um atrativo que tornasse as “Crônicas de Gelo e Fogo” numa história empolgante e envolvente.
O reforço veio com a criação do trono de ferro em Porto Real, a capital de Westeros, a cadeira do rei, sempre em ameaça pelo jogo de interesses de sete famílias nobres de Westeros. Assim, o rei Robert Baratheon morre, e uma disputa pelo trono se cria envolvendo os Lannisters, os Starks, os Baratheons, os Targaryens e assim por diante.
Em livro, a trama ficou tão ampla, que, em uma década, foram escritos seis fascículos (Martin ainda não terminou o trabalho: ele afirma que suas Crônicas terminarão em oito livros). Já na TV, a série coordenada pelos produtores-roteiristas David Benioff e Dan B. Weiss procuram a máxima fidelidade ao material. Isso, porém, não significa que a adaptação é literal. Como são muitos núcleos, algumas liberdades foram tomadas, e vários personagens foram deixados de lado (ainda assim Game of Thrones detém um recorde: na terceira temporada haviam 257 nomes no elenco!).
O empenho desta produção nos bastidores precisa ser contado em livro, por que há muitas minúcias para relatar. Por exemplo, antes da Primeira Temporada vingar em 2011, Benioff e Weiss escreveram quinze tratamentos para o roteiro do episódio-piloto. Eles foram apresentados em junho de 2008, para a cúpula da HBO. O episódio inicial foi filmado em 2009, mas devido a baixa recepção de audiência selecionada, a HBO exigiu extensas refilmagens (cerca de 90% do episódio, passou por mudanças).
Além de refazer o capítulo, atores foram trocados, a matriarca dos Stark, Catelyn Stark era feito pela atriz Jennifer Ehle, que foi substituída por Michelle Fairley, assim como a “Mãe dos Dragões”, Daenerys Targaryen, era defendida por outra atriz, antes de Emilia Clarke assumir a personagem.
No papel, Martin sempre deixou bem claro que, apesar dos elementos de magia e feitiçaria, a ênfase do projeto seria voltado para a intriga política e as personagens, afirmando que “os verdadeiros horrores da história humana derivam não de orcs e Lordes Negros, mas de nós mesmos”.
Um tema comum no gênero de fantasia é a batalha entre o bem e o mal, que, segundo Martin, não reflete o mundo real. O que explica por que somos surpreendidos por mudanças repentinas de caráter em vários personagens e nunca vemos episódios de redenção na série.
O fato é que esse mote diferenciado foi abraçado por uma audiência imensa, e, agora que a série está na reta final, muitos fãs não estão conseguindo lidar com as últimas reviravoltas.
Game of Thrones, no entanto, está sendo coerente com seu princípio original. Nenhum dos episódios da Oitava Temporada está fugindo do roteiro como acusam os fãs mais passionais. David Benioff e Dan Weiss continuam subvertendo os paradigmas. Tyrion vagueia perplexo pelo barulho e pelo desperdício. Jon Snow continua não conseguindo lidar com a descoberta da sua herança e Daenerys cada vez mais demonstra que não tem estrutura para arcar com o poder que conquistou.
Decepcionante, sim, seria se a série reservasse um happy end com um Jon Snow heróico virando rei, Daenerys assumindo seu lado ao trono como rainha e uma chuva de pétalas caindo sobre uma linda primavera em Porto Real. O encanto de Game of Thrones sempre residiu em matar toda a esperança de um fechamento feliz, reduzindo qualquer crença remanescente no poder redentor do heroísmo.
Na vida real é assim, nem sempre as coisas acontecem como planejamos.
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Os trunfos técnicos em números de Game of Thrones