O confinamento a que todos fomos submetidos por conta da pandemia colocou à prova várias certezas, mas uma delas acabou sendo corroborada: a de que a arte é inerente à vida. Sem ela, preencher os dias teria sido ainda mais custoso. Trancados em casa, procuramos refúgio nas obras audiovisuais, que nos apresentaram um mundo sem fronteiras ou limitações, nos trazendo acolhimento e nos permitindo vivenciar emoções tolhidas pelo momento único que o mundo atravessou. A vida, como conhecíamos, mudou, mas a sede pela cultura apenas se fortaleceu. Tanto que a poderosa e perspicaz primeira-ministra alemã, a conservadora Angela Merkel, largou na frente e logo no começo de maio anunciou medidas para que o setor cultural de seu país pudesse atravessar a crise sem maiores sequelas, num discurso contundente:

“Nosso país é um país de cultura. E nós nos orgulhamos da diversidade da nossa oferta cultural em todo o país: dos museus, dos teatros, das salas de concerto, dos clubes de literatura e muito mais. A nossa oferta cultural fala sobre nós, sobre nossa identidade. A pandemia do coronavírus significa um corte profundo na nossa cultura. Os artistas, e muito particularmente os artistas autônomos, são especialmente afetados. O momento atual é de insegurança. E, por isso, o governo federal, juntamente com os estados, se preocupa em que a nossa vida cultural continue no futuro e que pontes sejam construídas para que os artistas cheguem até lá. Eventos culturais são da maior importância para a nossa vida. E isso é verdade também em tempos de pandemia. Talvez agora nós estejamos nos dando conta do quanto a vida cultural nos faz falta. Pois da interação entre os artistas e o público se originam perspectivas totalmente novas, com as quais podemos olhar para a nossa própria vida: somos confrontados com emoções, desenvolvemos novas emoções e pensamentos, somos preparados para entrar em discussões interessantes, compreendemos melhor o passado e, também, podemos ver o futuro com outros olhos”.

Obviamente, Alemanha e Brasil possuem realidades sociais absolutamente díspares, contudo o posicionamento de Merkel serviu também para evidenciar ainda mais o descaso com as artes que infelizmente pontua nossas políticas públicas para o segmento. É certo que atividades culturais, como shows, espetáculos, cinemas, teatros e museus, foram as primeiras a serem fechadas e serão as últimas a retomar o movimento, pois ainda que a abertura já esteja em curso, o público se mostra receoso e a vacina, que poderia nos trazer alento para esta insegurança, ainda não é uma realidade e a imunização em massa de nossa população, por enquanto, parece mais um enredo de ficção. Com isso, temos um grande número de empresas e trabalhadores do segmento da cultura em condições limítrofes de sobrevivência. Infelizmente, o governo, até agora, foi incapaz de articular qualquer reação à crise que abala o setor ainda que este seja um importante gerador de emprego e renda no país.

 

Política audiovisual no Brasil

No Brasil, o audiovisual é encarado como política pública de Estado desde o início do século 20. Contudo, ao longo das décadas, prevaleceu o descontinuísmo que não favoreceu a solidificação de ações concretas para o seu impulsionamento que, inclusive, sofreu uma revolução no meio desta trajetória, com o advento da migração do analógico para o digital e a popularização da Internet, que abriu um novo universo de possibilidades, com o surgimento e massificação de novas mídias, como o streaming e as redes sociais. Dentro deste contexto, a criação da Ancine – Agência Nacional do Cinema, através da Medida Provisória 2.228-1/2001, foi comemorada, pois parecia deixar claro que o Estado estava, de fato, reconhecendo que tem obrigações com a cultura e o audiovisual. A criação da agência, aliás, está amparada no artigo 145 da Constituição Federal de 1988, que atribui ao Estado a obrigação de garantir a todos os cidadãos o direito

ao acesso às fontes da cultura nacional, cabendo a ele (Estado) apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais.

A importância da Ancinepara o audiovisual brasileiro

Com a criação da Ancine, a articulação política do setor, dentro do âmbito do governo, começou a ser executada com base em três pilares importantes: o Conselho Superior de Cinema (CSC), também estabelecido pela MP2.228-1/2001, a Ancine e a Secretaria do Audiovisual, então atrelada Ministério da Cultura. A essa estrutura de governança foi acrescido em 2006, o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (CGFSA), composto por representantes da Ancine, do governo, dos agentes financeiros e da indústria, com a missão de definir o plano anual de investimentos, bem como as diretrizes para a aplicação de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), composto por recursos da própria indústria, oriundos, em grande parte, da arrecadação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional – Condecine, um tributo destinado ao desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, gerado pela veiculação, produção, licenciamento e distribuição de obras audiovisuais com finalidade comercial, a partir da Lei 12.485/2011 e, portanto, pago pelos distribuidores de conteúdos audiovisuais, como as empresas de telecomunicações e operadoras de televisão por assinatura. E nestes quase 20 anos desde a publicação da MP 2.228-1/2001, a política audiovisual brasileira, executada principalmente por meio da regulação e do fomento proporcionados pela Ancine, foi se moldando as transformações, no volume, nos tipos de investimento, nas tecnologias e as consequentes novidades impostas a este mercado. E assim o audiovisual se transformou no segmento com mais estrutura da chamada economia criativa nacional.

Dados revelam que o faturamento do segmento audiovisual corresponde a aproximadamente 1,67% do PIB brasileiro, equivalente às indústrias têxtil e farmacêutica, injetando mais de 20 bilhões de reais por ano à economia e gerando mais de 300 mil empregos diretos e indireto. E nem mesmo a crise de 2018 abalou o setor, que parecia seguir forte, em expansão. Para o público brasileiro, isso significou um crescimento de 131% no lançamento de filmes nacionais entre 2010 e 2018 e o maior número de salas de cinema da história do país: 3.356 salas de cinema em 2018 contra 1.033 salas em 1975, o menor número da série histórica.

No entanto, apesar dos números favoráveis, a partir de 2018, alterações nas políticas ligadas ao setor imediatamente desencadearam uma repercussão nefasta. O golpe inicial partiu do TCU – Tribunal de Contas da União (TCU) ao considerar ilegal a metodologia de análise de prestação de contas adotada pela Ancine, embora estivesse fundamentada no Decreto 8.281/2014. Para completar o órgão atrelou o prosseguimento das operações de financiamento à adequação operacional para o acompanhamento dos projetos e a análise de prestação de contas. Os desentendimentos entre o TCU e a Ancine seguiram e acabaram resultando na suspensão do repasse de verbas públicas para o setor audiovisual. A crise adentrou por 2019 e o que se assistiu foi uma incapacidade da agência de seguir com as ações de fomento em paralelo às ações operacionais exigidas pelo TCU e o problema despertou uma insegurança jurídica, que abalou todos os pilares da política do audiovisual.

Foi então que o cinema nacional levou outro baque quando, em 2019, o decreto anual de “Cota de Tela”, que define a proporção do espaço mínimo obrigatório a ser destinado à produção brasileira no circuito de exibição, conforme previsto na Lei 12.485/2011, não foi publicado. Na sequência, a Ancine foi ameaçada de extinção. Não houve indicação de diretores para integrar a sua Diretoria Colegiada e a agência encerrou o ano com apenas um dos quatro diretores nomeados. A partir daí, os problemas

políticos dentro da agência foram se avolumando até a extinção do Ministério da Cultura, em 2020, quando ela passou a integrar a estrutura da Secretaria Especial de Cultura que, por sua vez, teve mais de cinco Secretários Especiais, se considerarmos titulares e interinos, tendo sido vinculada a dois Ministérios diferentes: ao Ministério da Cidadania e, desde novembro de 2019, ao Ministério do Turismo.

Inexistência de Políticas Públicas Consistentes ameaça o setor audiovisual

Para resumir, é possível afirmar que desde a extinção do Ministério da Cultura, a política cultural brasileira como um todo – e a política audiovisual em particular – passa por uma crise institucional e segue agonizando. O cenário desolador se completou com a pandemia. De repente, cerca de 5,2 milhões de trabalhadores brasileiros, distribuídos em mais de 300 mil empresas que atuam no setor cultural, tais como: cinemas, teatros, casas de shows e museus, tiveram suas atividades subitamente paralisadas. O resultado disso, segundo estudos recentes, foi um prejuízo de R$ 11,1 bilhões em três meses, considerando-se apenas a retração do consumo cultural feito em áreas ao ar livre ou espaços culturais. Se somarmos a esta conta todos os cancelamentos, incluindo de grandes eventos, só no estado de São Paulo o prejuízo cresce para R$ 34 bilhões. E como em qualquer outro segmento, as perdas causam um efeito cascata: a cada R$ 1 perdido na cultura, R$ 1,6 são subtraídos da economia como um todo, e a cada cinco empregos perdidos no setor, mais um é posto de trabalho é extinto em setores correlatos.

A Covid também encurtou a revolução do streaming que já estava em curso. Artistas, encontraram na internet a ferramenta para chegar ao seu público. Muitos, com o objetivo de amenizar os efeitos do isolamento social, cederam sua arte de forma gratuita. E agora o que se vê é um movimento natural de reorganização, que traz muitas dúvidas e incertezas. E para que a cultura nacional avance neste novo mundo pós-pandemia é essencial o apoio de políticas públicas, seguindo o exemplo de vários países que adotaram ações emergenciais destinadas ao setor cultural, com um leque de ações de caráter administrativo, financeiro e regulatório, imprescindíveis para se fazer frente aos desafios impostos pela pandemia. Por aqui, o socorro parece uma realidade distante e o que predomina são incertezas. Desta vez, a vida, infelizmente, não parece estar imitando a arte.

 

Rush Video – Ideias em Movimento.